Ter, 31 de Maio de 2011 16:23
Dupla função decorre da falta de regulamentação da profissão e da omissão de administradores, legisladores e órgãos gerenciadores do trânsito.
Terça-feira, 7h30. Destino: estação de metrô Eldorado. Meio de transporte: micro-ônibus. Valor da passagem: R$2,55. Forma de pagamento: dinheiro, R$10,00, que obviamente pede troco. Pessoa que irá receber e dar o troco: motorista.
É que nesses ônibus de menor porte, que, na prática percorrem distâncias consideráveis, como os coletivos tradicionais, não há a presença de agentes de bordo. Quem faz o recebimento do dinheiro ou observa a validação do cartão é o próprio motorista que, acumulando as funções de dirigir e receber, trafega com um olho no trânsito e outro nas notas, moedas e cartões.
Insegurança
A consequência dessa dupla-função, disseram os profissionais do volante, que preferiram não se identificar, temendo represálias e a perda de seus empregos, que o aumento do estresse e dos afastamentos por doenças relacionadas à dupla função é fato. A expressão dos motoristas entrevistados, que aparentava certa tensão, é um indicativo de como esses profissionais do transporte coletivo da cidade encaram a situação de não poderem contar com a presença do cobrador nos itinerários que percorrem diariamente, inclusive em linhas intermunicipais.
Um dos motivos pelos quais se veem forçados a exercer funções distintas da atribuição prevista para o cargo - conduzir veículos - é que essa profissão ainda não é regulamentada por lei. Segundo o Portal do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar -Diap, tramitam atualmente no Congresso mais de 60 Projetos de Lei relacionados aos trabalhadores rodoviários, ferroviários e metroviários, versando sobre temas como regulamentação da profissão, jornada de trabalho, aposentadoria especial, insalubridade, penosidade, periculosidade e segurança, além de outras questões gerais relativas ao Código de Trânsito e à Previdência Social.
Alguns desses projetos estão parados no Congresso há mais de 30 anos, como é o caso da regulamentação da profissão de motorista. Em Contagem, o único Projeto de Lei que estabelecia a proibição da cobrança da passagem por motoristas, o PL 064/06, de autoria do ex-vereador Jander Filaretti (PV), foi arquivado pela Câmara Municipal.
Legislação
O gerenciamento do sistema de transporte e circulação de pessoas, veículos e mercadorias do município é de responsabilidade da Prefeitura, e feito através da Autarquia Municipal de Transporte e Trânsito - Transcon. A Lei Municipal 3.514/02, que em 2002 criou o sistema de bilhetagem eletrônica no serviço de transporte coletivo urbano na cidade, estipula em seu Art. 3º que "a função do cobrador será substituída pela função de agente de bordo" e que "cada veículo destinado ao transporte coletivo regular de passageiros, ônibus convencional com duas portas, será operado, em todo o seu itinerário, por, no mínimo, um motorista e um agente de bordo, (...)".
No entanto, segundo a Transcon, "o parágrafo em questão refere-se apenas aos ônibus convencionais, mesmo que os micro-ônibus também possuam duas portas". A Transcon informa também que "70% dos usuários pagantes do transporte coletivo na cidade utilizam o cartão como forma de pagamento". Ainda assim, o Art. 4º da lei 3.514/02 é enfático ao afirmar que "qualquer nova tecnologia implantada deverá prever o aproveitamento em novas funções de eventuais trabalhadores não mais necessários".
"A Transcon é conivente com esta situação. Essas empresas de ônibus aí são uma 'máfia', e por isso nem eu nem os outros entrevistados irão se identificar, pois se o nome da gente aparecer poderemos ficar marcados e não conseguir mais emprego em lugar nenhum", afirma um dos temerosos motoristas entrevistado.
As acusações ficaram sem resposta, já que, até o fechamento desta edição, o Sindicato dos Transportes de Passageiros Metropolitanos - Sintram não havia se posicionado.
Sinttracon
Por outro lado, de acordo com o presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Transportes Rodoviários de Contagem - Sinttracon, Renato Corrêa dos Santos, "a Transcon, a Prefeitura e mesmo os vereadores de Contagem, que com certeza sabem da nossa dificuldade, já poderiam ter tomado uma providência para coibir a dupla função. Já entramos com ação no Ministério Público, promovemos audiência pública, estivemos no Ministério do Trabalho e temos o apoio de muitos deputados e senadores que vêm trabalhando nisso, mas infelizmente os motoristas de micro-ônibus da cidade continuam exercendo dupla função", observa.
Ainda de acordo com o sindicalista, o pior é que "tem empresário que está pagando mais aos trabalhadores que exercem a dupla função para incentivá-los a 'aceitar' essa realidade; mas nós somos contra isso. Queremos, em primeiro lugar, que a profissão seja regulamentada; e em segundo, que a lei de trabalho de oito horas seja cumprida e que o motorista trabalhe apenas na sua função, pois a função de cobrar a passagem é do cobrador", assinala Renato.
Com o mesmo pensamento, um dos diretores do Sindicato, João Augusto Soares Filho, coloca que "a distância percorrida pelos micro-ônibus, em comparação com os ônibus tradicionais, no fim das contas é a mesma. Sendo assim, não há porque dispensar a presença do cobrador. A diferença é que o condutor do micro-ônibus fica sobrecarregado, porque além de dirigir tem que cuidar do recebimento do dinheiro", reforça.
João Augusto afirma também que "há muitos afastamentos decorrentes do acúmulo de funções, e isso vem sendo constatado há tempos. O estresse não é o único problema, há dores de coluna e lesões por esforços repetitivos - L.E.R. Mas é difícil provar que esses problemas estão relacionados ao acúmulo de função, porque o médico do trabalho não escreve o que causou o mal, apenas constata a doença, e assim nós vamos indo", denuncia o sindicalista.
Usuários também sofrem
Passageiros também reclamam da ausência do agente de bordo nos micro-ônibus. "A falta do cobrador acaba fazendo com que tanto os idosos, gestantes e deficientes físicos, que têm a reserva de assentos assegurada na parte dianteira dos ônibus, quanto os demais usuários do transporte coletivo fiquem prejudicados, porque o espaço na parte dianteira do ônibus que fica antes da roleta é pequeno", aponta a usuária Sônia Guimarães.
Para ela, este detalhe é o principal causador dos verdadeiros tumultos que ocorrem nos micro-ônibus, especialmente nos horários de pico, que ocorrem geralmente no trajeto para o metrô, na parte da manhã, e no fim do dia na volta para os bairros."O motorista tem que olhar é para o trânsito, não para os passageiros", reclama Sônia, reconhecendo as dificuldades dos profissionais do volante na cidade.
Em BH, ônibus tem cobrador
Na capital mineira, a Lei Municipal 8.224/01, que autorizou a implantação da bilhetagem eletrônica nos coletivos, garantiu o emprego dos cobradores ou "trocadores", que passaram a ser designados como "agentes de bordo". A mesma lei instituiu que "cada veículo destinado ao transporte coletivo seja operado, em todo seu itinerário, no mínimo, por um motorista e um agente de bordo", assim como em Contagem.
Só que em Contagem a determinação da presença de pelo menos um agente de bordo nos coletivos não é válida para os micro-ônibus, diferentemente do que acontece em BH.
Motoristas revelam sofrimento para cumprir rotina estressante
"É mais cansativo e estressante. Em muitos ônibus há a presença da placa 'proibido conversar com o motorista', pois entende-se que isso possa tirar a atenção de quem estiver dirigindo. Existe também o Código Brasileiro de Trânsito que proíbe conversar ao celular e dirigir ao mesmo tempo, mesmo se for utilizado o fone de ouvido. Mas e receber dinheiro dos passageiros e dar o troco, não tira a atenção não?", questiona um dos motoristas de micro-ônibus ouvidos pelo Folha de Contagem.
Outro entrevistado afirmou que, para cumprir o horário estipulado para os itinerários e rotas, o recebimento das passagens deve ser feito mesmo com o veículo em movimento. Trocando em miúdos, os motoristas precisam receber dinheiro e dar troco e dirigir ao mesmo tempo. "Quando o pagamento é em moeda e o ponto de ônibus está cheio, a gente tem que recebê-las confiando na honestidade e na atenção da pessoa, pois existe um horário a ser cumprido e o pessoal, nem os passageiros nem o dono da empresa, quer saber porque atrasou", coloca.
De acordo com ele, "nesses momentos de pico a gente fica até meio perdido. Às vezes falta dinheiro para o valor total da passagem, e não é nem por má-fé, mas porque as moedas não foram recontadas. Mas quando acontece isso, de o dinheiro faltar, ninguém quer nem saber, as câmeras estão aí, sabe? Quem leva prejuízo é a gente, não é a empresa", lamenta.
Para este outro profissional, dirigir e receber as passagens também é um transtorno. "A dupla função faz com que as viagens, muitas vezes cansativas por causa do trânsito pesado, buracos nas ruas e motoristas imprudentes, fiquem ainda piores. Tudo isso acaba aumentando o estresse ao qual o motorista fica submetido. Não é fácil, mas a gente tem que se sujeitar a isso, fazer o quê. Esse negócio até já foi parar na justiça, mas nos deram um abono salarial pequeno e tudo ficou por isso mesmo", desabafa.
Fonte: www.folhadecontagem.com.br
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