Já há alguns anos, quando penso no sistema público de serviços de saúde brasileiro, me lembro de uma frase. Ouvi de um dos ministros da Saúde de um dos nossos últimos governos social-democratas que a solução para o SUS era o crescimento dos planos privados de saúde. Até hoje, não sei bem como reagir a essa fala.
O ministro foi transitório, talvez não expressasse a política do governo, mas não tenho certeza. E esse é apenas um dos aspectos intrigantes da frase: expressava a política para a saúde da social democracia no Brasil?
É difícil responder a essa questão. Em parte, porque o SUS é certamente um daqueles casos tão brasileiros e tão universais em que o apego à ideia nos impede de ver a realidade.
Uma das coisas que nos choca quando defrontamos com clareza nossos pensamentos diante da realidade brasileira é como flutuamos entre a hipocrisia pragmática e o idealismo ingênuo. É difícil discernir as coisas nessa transição conservadora. Alianças e conluios com empreiteiros, associação aos milicianos, ao cristianismo fundamentalista, repressão violenta e terror contra manifestações, tudo isso está na pauta de opções pragmáticas dos governos social-democratas do nosso país. E olhamos para elas com o reconhecimento sincero de que não tínhamos melhor caminho para seguir.
É por isso que vale a pena pegarmos de frente a frase do nosso amigo ex-ministro e sermos tomados pelo choque de termos de reconhecer essa política pragmática e negá-la ideologicamente.
Pode ser que a gente se embrulhe mesmo nesses juízos e que a gente mesmo não saiba qual é a melhor opção para o Brasil. Assumir o caráter híbrido do sistema público de saúde e contabilizar o crescimento da parcela privada como vitória da via social-democrática ou aferrar-se à ideia talvez ingênua, romântica, legalista, universalista, de um sistema único de saúde?
Num país onde cada possível direito é buscado e preservado como privilégio até o limite do impossível, num país que continua com a desigualdade socioeconômica como uma das marcas mais profundas, é mesmo muito difícil um sistema único de saúde real.
E, por isso, não é difícil ver nosso juízo sobre o SUS envolto numa mistura de ingenuidade e hipocrisia.
Talvez as coisas sejam mesmo difíceis de resolver e cada passo adiante no país tenha de ser conseguido como numa guerra de trincheiras infindável. Talvez a vida social seja sempre assim.
Enfim, seja como for, um pouco mais de realismo não deve nos atrapalhar.
Não parece claro, honesto, franco, correto, dizer que o Brasil, ou ainda mais especificamente a sua social-democracia, tenha feito uma opção política real pelo SUS. Não se pode também dizer que não a tenha feito.
Bom, mas assim andamos de ambiguidade em ambiguidade e não estamos dispostos a continuar nesse rumo, ou nessa falta de rumo, não é? Entendo, mas ocorre que a realidade é mesmo ambígua e diversa e polissêmica e enfim, podemos prosseguir assim, negando a realidade pela ilusão até onde a imaginação alcance.
Talvez a gente possa discernir então o que mais nos incomoda, o que se poderia dizer que é inaceitável, o que é indigno e pode ser modificado. Talvez a gente chegue bem rápido à equação: são as deficiências de acesso e qualidade no SUS que nos incomodam mais e isso se resolve com maior financiamento. Não é difícil concordar com esse raciocínio. Dez por cento do PIB para o SUS é o que queremos. Queremos? Quem? Os defensores do SUS, ora. Ok, ok, os defensores do SUS. E me desculpem perguntar, mas quem são, ou quem somos, eles, os defensores do SUS?
Teoricamente, somos todos, qualquer um, os pesquisadores de saúde pública com certeza, os universalistas em geral, por que não? Mas afora a força dessa ideologia, onde as decisões são tomadas na prática social, o que ocorre? Acho que devo estar fazendo um raciocínio tão banal, mas tão desagradável que talvez seja melhor ignorá-lo. Sob esse ponto de vista a gente conta apenas com a ideia e a boa vontade, a boa fé que caracteriza mesmo o idealismo e a ingenuidade. Nenhum político no Brasil é comprometido fisicamente com o SUS. Nenhum deles é usuário do SUS. É difícil que o sistema público de serviços de saúde pública no Brasil prospere sem um comprometimento maior dos políticos e eles têm apenas interesses abstratos, idealistas, em relação ao SUS.
Criticar que os políticos do país tenham privilégios que os distinguem da sociedade em geral é perigoso numa cultura em que cada direito é defendido como privilégio com unhas e dentes pelas categorias que os conquistaram, contra todos os que não os têm. No fim das contas, quase todos os defensores do universalismo do SUS estão mais empenhados em garantir os direitos ao plano de saúde especial e ao fundo de pensão e aposentadoria privilegiado.
A cultura, enfim, dá um grande valor a isso, quem pode vai ser atendido no Albert Einstein, ou no Sírio Libanês. Quem pode faz dezenas de cirurgias para tratar um câncer incurável e todos elogiam o grande apreço pela vida e tenacidade do mártir, enquanto ficam profundamente marcados pela qualidade dos profissionais que persistiram tentando salvar a vida do paciente com todos os recursos disponíveis no mundo da tecnologia médica. Viva!
E isso fica mesmo marcado em nosso emocional. Defender que os políticos brasileiros sejam usuários do SUS, nesse contexto, parece ser até um crime contra eles. Nós todos sabemos que um discurso igualitário radical toma facilmente as cores fascistas e não é o que vemos acontecer aqui e ali nas manifestações Brasil afora? É claro, viva a liberdade, viva o livre mercado e as distinções de poder!
E não falo isso com maiores angústias, é assim que é a social-democracia – e a nossa é assim ao quadrado. As distinções de riqueza e poder político precisam ser mantidas com firmeza. Até aí podemos transitar com alguma dignidade, com a cabeça erguida, como bons universalistas que somos. Tudo bem, numa social-democracia transitamos com essas distinções e contra elas mesmas e, ora bolas, qualquer coisa pensada para além disso é puro idealismo utópico. Vamos adiante e no SUS nós temos mesmo um instrumento inovador em termos de gestão social: os Conselhos de Saúde. Quem poderia, em sã consciência, não reconhecer o grande avanço institucional marcado pelos Conselhos de Saúde? Para provar, o institucionalista não perde tempo em lembrar que essa prática democratizante foi copiada por várias outras áreas de política pública no país.
O que acontece hoje com a participação social no SUS? O institucionalista lembrará, agora com orgulho, que a participação popular no SUS está garantida pela paridade nos conselhos e conferências de saúde. É verdade, mas aqui o idealismo ingênuo e o pragmatismo hipócrita se dão as mãos de tal maneira que é preciso a gente fazer um esforço para separá-los.
Uma forma de fazer essa distinção, ao que me parece, é aquela adotada recentemente pelo Ministério das Cidades. É bem simples: façamos conselhos de participação popular onde governo e empresários tenham algo próximo de 70% dos membros, o restante fica entre ONGs e representações populares. É a consagração da hipocrisia como política, mas pelo menos é uma posição assumida. A seguir esse rumo, o mais honesto e efetivo é transformar todos esses conselhos em agências reguladoras, onde a tecnocracia, em nome do povo, acerta-se diretamente com o poder econômico.
Mas isso não é o que queremos, com certeza. Não vamos retroceder um só milímetro da paridade de representação dos usuários que conquistamos no SUS! É um grito possante do nosso idealismo. Bom, acho que agora já sabemos que o idealismo não basta, precisamos dar um passo adiante, precisamos encarar a realidade. E quem se obriga a olhar de fato para o uso desse instrumento só não desespera se for muito perseverante com a participação direta como opção política.
Sei que esse não é o único e talvez não seja o melhor critério, mas, se também no Conselho Nacional e nos Conselhos Estaduais de Saúde, mesmo entre os 50% considerados representantes dos usuários do SUS, não tivermos um só usuário do SUS, talvez a gente deva se obrigar também a reconhecer que aí temos um problema sério.
Podemos aceitar que os congressistas, os políticos em geral, o Executivo e todos na cadeia de corporações e classes médias estejam de um modo pessoal desinteressados do SUS. Mas é claro que não dá para aceitar que nas representações diretas dos usuários não haja usuários. Tem gente que não leva isso a sério, mas é sério demais. Basta pensar que agora toda a estrutura de representação deste país (e do mundo) está sendo colocada em questão.
Aquelas instituições que têm interesses ligados aos planos privados de saúde (como as centrais sindicais e as corporações funcionais da academia, entre outros) serão mesmo bem indicadas para serem os representantes dos usuários no SUS? E os representantes de portadores de patologias, serão? Como fazer uma representação real dos interesses dos usuários do SUS? Será que essas questões não interessam à social-democracia brasileira? Será que foram simplesmente negligenciadas? Não estou certo, mas me parece claro que temos o desafio histórico de enfrentá-las.
*Paulo Fleury Teixeira é pesquisador do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva da UFMG.