Proposta rejeitada pela Câmara será reapresentada por vereador do PV, que afirma não ter a intenção de prejudicar religiões. Líderes do candomblé veem perseguição e querem punição
por Lucas Esteves, para a RBA publicado 14/05/2013 13:40
ROBSON B. SAMPAIO/FLICKR
Religiosos consideram a medida discriminatória e recordam que os animais mortos em cultos são usados para consumo
Salvador – As brigas entre oposição e situação e a controversa Reforma Tributária enviada pelo prefeito ACM Neto (DEM) não foram as questões mais polêmicas no primeiro semestre da nova legislatura na Câmara de Vereadores de Salvador. De todos os assuntos que já passaram pela Casa até agora, um projeto de um vereador do PV foi o que trouxe mais debates, brigas e manifestações: a proibição de sacrifício de animais em rituais religiosos na cidade.
No enredo da história estão alegações de preconceito religioso, fogo-amigo dentro do próprio partido, falta de apoio generalizada dentro da Câmara e uma “invasão” popular na Casa, como há tempos não se via na capital baiana. No centro de toda a confusão está um vereador novato na profissão e que despontou recentemente como o mais controverso entre os 43 nomes que compõem o corpo legislativo local: Marcell Moraes.
Administrador de empresas por formação, Moraes foi forjado no movimento estudantil e ficou célebre por assumir em 2008 uma briga dentro da Faculdade de Artes, Ciências e Tecnologia (Facet – já extinta) após ter se indisposto com a diretoria da escola. Ele chegou a ser condenado à prisão por continuar a se manifestar por seus direitos. Após isto, disputou duas eleições para vereador até conseguir mandato. Ambientalista histórico, acrescentou ao seu discurso a luta pela defesa dos animais e foi o 22º mais bem votado na cidade ano passado.
A iniciativa que resultou em confusão, nascida no final de abril, atingiu em cheio uma das bases das religiões de matriz africana, que em Salvador tem muitos adeptos e entidades especializadas e imediatamente provocou acalorados debates. De acordo com o vereador verde, a proposta visa a coibir a morte e/ou mutilação de animais em qualquer espécie de rituais religiosos, sem especificar quais crenças isto atingiria.
Já prevendo confusões, Moraes alegou em entrevistas que não se tratava de perseguição religiosa e sim de evitar que animais fossem cruelmente mutilados em rituais e que a ideia também era coibir a prática de abandono de animais mortos em oferendas em locais ermos da cidade. Como opção ao uso dos animais, o vereador propôs que plantas ou folhas substituíssem as oferendas originais e disse que os orixás entenderiam a motivação do projeto.
Entretanto, como em Salvador apenas o candomblé recorre à prática de associar as reivindicações às entidades com a oferenda dos animais, o projeto atingiu em cheio o povo de Santo, que se ofendeu com a tentativa. A unanimidade dos especialistas no assunto alegou que o projeto era uma tentativa velada de cercear o culto religioso na capital.
O primeiro líder a se manifestar contrário ao projeto foi o espírita José Medrado. Segundo ele, a solicitação de Moraes é descabida porque o vereador agiu sem pesquisar o assunto e, assim, corria o risco de “demonizar” religiões que já sofrem preconceito o suficiente na cidade. Além disso, explicou Medrado, nenhum sacrifício de animais em terreiros de Candomblé ocorre gratuitamente.
“Esse sacrifício não é apenas uma oferenda aos Orixás. Todas as partes do animal vão servir de alimento, nada é jogado fora. O couro do animal é usado para encourar os atabaques, o animal inteiro é limpo e cortado em partes; algumas partes são preparadas para os Orixás e o restante é destinado aos demais. Normalmente há uma festa no dia seguinte – o sacrifício é feito durante a madrugada e as carnes preparadas durante a manhã para serem servidas no almoço. Até o que é oferecido ao Orixá depois é dividido entre os filhos do terreiro”, descreveu. Na prática, segundo ele, é como ocorre em açougues em qualquer local de Salvador.
A polêmica da proibição dos sacrifícios chegou a tal ponto que até mesmo colegas de Marcell Moraes na Câmara se posicionaram radicalmente contra a sua iniciativa. Os primeiros a ir a público atacar a proposta foram os colegas de PSB Fabíola Mansur e Sílvio Humberto. De acordo com Humberto, o projeto é um ato de arrogância, uma vez que o próprio Moraes considerava os rituais religiosos “medievais e arcaicos. "O projeto é a porta para a intolerância religiosa, que é tudo do que não precisamos e deve ser combatida".
Com o passar dos dias, outros vereadores, a exemplo de Hilton Coelho (Psol), Edvaldo Brito (PTB) e o líder da oposição, Gilmar Santiago (PT), fizeram duras críticas em plenário e em entrevistas a diversos veículos da imprensa. De acordo com o petista, a matéria é repulsiva a tal ponto que não havia sido proposta sequer pelos evangélicos, porção de religiosos na cidade que está eternamente em pé de guerra com os praticantes das crenças africanas.
A pressão contrária a Marcell Moraes veio até mesmo de dentro do próprio partido. Eleita para a Câmara com a mesma plataforma política do colega, Ana Rita Tavares (PV) também classificou o projeto como “inconsequente” e disse que o edil não pensou que a proibição não é a melhor maneira de atuar. Para a vereadora, a argumentação e conscientização são a melhor maneira de atuar neste sentido. Além dela, a própria direção do partido veio a público rejeitar o projeto.
O presidente do PV em Salvador emitiu comunicado oficial rejeitando a iniciativa. Luiz Araújo declarou em documento oficial que a proposição não representava o pensamento do PV de Salvador e que Marcell Moraes agiu em desacordo com a legenda e que o PV não ampara oficialmente o projeto. Revoltado com esta última manifestação, o vereador reclamou que estava sendo mal-interpretado pelos colegas e que a sigla o desrespeitava. Instaurado o desentendimento geral, ameaçou abandonar o partido se não houvesse retratação. Foi preciso a entrada da Executiva Nacional dos verdes para contornar o problema.
Dirigente do PV no Rio de Janeiro, Luiz Fernando Guida serviu de intermediário na polêmica interna e contrabalançou as insatisfações de lado a lado. Ao mesmo tempo em que acalmou a verve de Moraes, recusou que houvesse qualquer mudança na dirigência do partido em Salvador por conta dos desentendimentos. Para ele, o fato foi uma oportunidade de aparar arestas e deixar o processo interno mais organizado e democrático. No final, disse que faltou mesmo conversa e que “de um limão decidimos fazer uma limonada”.
O ápice da pressão ocorreu no último dia 6 de maio, quando centenas de integrantes de diversas entidades religiosas afro de Salvador invadiram a Câmara para defender a não-aprovação do projeto. Presente à sessão ordinária, Moraes foi obrigado a ouvir em silêncio todo tipo de agravo pessoalmente. Em especial, lhe foi dito que respeitasse e, sobretudo, conhecesse o culto afro para que não corresse o risco de tratá-lo com preconceito e piorasse sua visão junto à sociedade.
A ialorixá Jaciara dos Santos, conhecida como Mãe Jaciara, foi uma das mais incisivas nas críticas a Marcell Moraes. Segundo ela, a proposta é “ridícula”, lhe dá “arrepios” e que o verde é “desinformado”. “Esse vereador tem que ser preso. O Estado tinha que mover uma ação contra ele. Infelizmente, as coisas para o nosso povo caminham morosamente”, disse em entrevista aoBocão News, uma página de notícias da capital. Para ela, o edil poderia se preocupar mais com problemas sociais que assolam a capital e deixar os terreiros fazerem seu trabalho espiritual.
Ao todo, oito entidades participaram do ato e, ao final da manifestação, um documento exigindo a reprovação do projeto foi assinado pelos líderes e encaminhado à Mesa Diretora da Câmara. No outro dia, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) se reuniu e vetou o processo por inconstitucionalidade. A análise final foi feita pelo vereador Edvaldo Brito, o mais experiente jurista a fazer parte da Casa, ex-vice-prefeito no mandato Executivo passado e integrante da CCJ.
De acordo com ele, as razões para vetar a proposta de Moraes versam sobre a liberdade de culto e a laicidade do Estado brasileiro, todas aviltadas pela matéria do verde. Por fim, Brito se posicionou como integrante de religião afro para reforçar a negativa. "Sou babá egbé (espécie de líder substituto) de uma casa importante [Gantois], filho de Ogum, que é o orixá que conduz as pessoas. Vou ver se meu povo responde a uma oração do orixá que abre caminhos". O presidente da CCJ, Kiki Bispo (PTN), acatou a análise do jurista e recusou o projeto, no qual teve votos seguidos de Leo Prates (DEM), o próprio Brito e Alfredo Mangueira (PMDB) para arquivá-lo.
Contrariado, Marcell Moraes afirma que não desistirá da proposta. Ele enviou um substitutivo à Mesa e aguarda votação do projeto. Em suma, excluiu o termo “religiosos” da proposta e diz que tem muito apoio para lutar pela proposição e que, eventualmente, ela será acatada. “Tenho o apoio já de 15 vereadores. Entre eles está José Trindade (PSL), que já se disponibilizou a ser o co-autor do projeto”, explica.
Moraes disse que tirou do projeto original o termo para deixar claro que sua luta é pelos animais, e não contra as religiões. “Eu fui eleito para lutar pelos animais e farei isso até o último dia do meu mandato”, defendeu-se. Para ele, que precisa de ao menos 29 votos para viabilizar sua proposta como lei municipal, há debates diários ocorrendo com cada um dos vereadores e que no prazo entre 30 e 45 dias acredita que conseguirá a maioria em votação.
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